domingo, 31 de julho de 2011

Miragem




 ‎...Estar presente no "aqui" e "agora" é estar consciente e ao mesmo tempo... "alheia" ao que está a acontecer neste preciso momento...
Significa que estou focada na minha admiração à paisagem..
Imersa e movida pelo sonho...

Alexandra Martinho



Em tudo pressentimos um nada.

Nuno Magalhães

Eternidade

 Para ti... Para marcar este dia...





Eternidade

Vens a mim
pequeno como um deus,
frágil como a terra,
morto como o amor,
falso como a luz,
e eu recebo-te
para a invenção da minha grandeza,
para rodeio da minha esperança
e pálpebras de astros nus.

Nasceste agora mesmo. Vem comigo.

Jorge de Sena, in 'Perseguição'

sábado, 30 de julho de 2011

Existência...






Não importa se você está longe ou perto.
O importante é que você exista para que eu possa sentir a sua falta.

Rute Nicau Cassapo



" Existem outros mundos, remotos, silênciosos, distantes...
Onde a vida se "revela" com toda a intensidade...
Vamos até lá?!"

Alexandra Martinho

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Calma




O Meu Olhar Azul como o Céu

O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta ...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol ...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXIII"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Qualquer Coisa de Paz





Qualquer Coisa de Paz

Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.

Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.

Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área

de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruína
a luz da fronte onde a atenção domina.

Fernando Echevarría, in "Figuras"

sexta-feira, 22 de julho de 2011

... Constante derruir...







Ruínas

Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!... Deixa-os tombar... Deixa-os tombar.

Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Onde estão os meus amigos?




Onde estão os meus amigos?

Remotas memórias
Saltitam
Pululam
Cheiros / odores / miragens
...O café
O sorriso
Olá como está!
E outras encenações
A novidade
A vizinha do 3º fugiu, amanhã vem no jornal

Ai..a imperial da Munique
Os destemidos tremoços
Moços, maçons
Canalha / navalha
Pensa coração
Amigos onde estais?

A sueca com minis à mistura
O relato da bola
A malha / copo de 3
A feira do relógio
O relógio da feira
Sandes de couratos / vinhos de Torres
Jogging de Marvila

Domingo
Especialmente domingo
Barbeados / dentes lavados
E martinis no plástico labrego
Alumínio / moderno / kitch / mau gosto
12 cordas / mãozinhas
Salteadores da razão perdida
Perdidos / enjaulados
Correio da manhã
O cú da vizinha do 9ºB
Regalo para a vista
Suplemento a cores com salários em atraso

E a Lisnave / petroquímica
Cancros do meu Tejo
Apodrecendo lentamente o azul das águas
E eu impotente / cinemascope / 35 milímetros de mim
A raiva afogada entre cubaslibres e pernas de mulheres
Que não são putas nem são falsas nem são nada
São pernas de mulheres e cubaslibres simplesmente

Paga-se a saudade com cartão de crédito

Táxi
Leva-me para onde está o meu amor
Táxi
Leva-me para lá de mim
Táxi
Atropela-me os sentidos e a alma para não deixar vestígios

(Viriato Ventura)

Pomba Branca



Pomba Branca

Pomba branca, pomba branca
Já perdi o teu voar
Naquela terra distante
Toda coberta p'lo mar
Pomba branca, pomba branca
Já perdi o teu voar
Naquela terra distante
Toda coberta p'lo mar

Fui criança e andei descalço
Porque a terra me aquecia
E eram longos os meus olhos
Quando a noite adormecia
Vinham barcos dos países
E eu sorria a deus, sonhei
Traziam roupas, felizes
As crianças dos países
Nesses barcos a chegar

Pomba branca, pomba branca
... ... ...

Depois mais tarde ao perder-me
Por ruas de outras cidades
Cantei meu amor ao vento
Porque sentia saudades
Saudades do meu lugar
Do primeiro amor da vida
Desse instante a aproximar
Dos campos, do meu lugar
À chegada e à partida

Pomba branca, pomba branca
Já perdi o teu voar
Naquela terra distante
Toda coberta p'lo mar
... ... ...

Paulo de Carvalho
Composição:
Maximiano de Sousa (Max)

Blowin' In The Wind




Blowin' In The Wind


How many roads must a man walk down,
Before you call him a man?
How many seas must a white dove sail,
Before she sleeps in the sand?
Yes and how many times must cannonballs fly,
Before they're forever banned?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind

Yes and how many years can a mountain exist,
Before it's washed to the seas (sea)
Yes and how many years can some people exist,
Before they're allowed to be free?
Yes and how many times can a man turn his head,
Pretend that he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind.

Yes and how many times must a man look up,
Before he can see the sky?
Yes and how many ears must one man have,
Before he can hear people cry?
Yes and how many deaths will it take till he knows
That too many people have died?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind

Bob Dylan

Sittin' On The Dock Of The Bay



 (Sittin' On) The Dock Of The Bay

Sittin in the morning sun,
I`ll be sittin' when the evening come,
Watching the ships roll in,
And I'll watch 'em roll away again, yeah,
I'm sittin' on the dock of the bay,
Watching the tide roll away, ouh,
I'm just sittin' on the dock of the bay,
Wasting time.

I left my home in Georgia,
Headed for the Frisco bay
I have nothing to live for,
Look like nothings gonna come my way,

So I'm just go sit on the dock of the bay
Watching the tide roll away,
I'm sittin' on the dock of the bay,
Wasting time

Look like nothings gonna change,
Everything still remain the same,
I can't do what ten people tell me to do,
So I guess I'll remain the same, yes,

Sittin' here resting my bones,
And this loneliness won't leave me alone, yes,
Two thousand miles I roam
Just to make this dock my home

Now I'm just go sit at the dock of the bay
Watching the tide roll away, ooh
Sittin' on the dock of the bay
Wasting time

Otis Redding

terça-feira, 19 de julho de 2011

Descalça Vai Para a Fonte


Descalça Vai Para a Fonte

Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

O Palácio da Ventura


O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

Antero de Quental, in "Sonetos"

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Nunca, por Mais



Nunca, por Mais

Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça
O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,
A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea —
Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma,
Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem —
Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Mais Alto




Mais Alto

Mais alto, sim! mais alto, mais além
Do sonho, onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! Aquela a quem

O mundo não conhece por Alguém!
Ser orgulho, ser águia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!

Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível!
Turris Ebúrnea erguida nos espaços,
A rutilante luz dum impossível!

Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber
O mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

sábado, 16 de julho de 2011

Do rio...

“Do rio que tudo arrasta, se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
Bertold Brecht

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Dá-me lume...



"Boa noite, -me um bocadinho do seu lume se faz favor"...

Vasco Santana in Pátio das Cantigas (1942)

Catedrais




As Cathedraes

Como vos amo ver ó cathedraes sosinhas,
A recortar o azul das noutes constelladas!
Erguidos corucheus, mysticas andorinhas,
- Ó grandes cathedraes do sol ensanguentadas!

Como vos amo ver, pombas alvoroçadas!
Ogivas ideaes, anjos de puras linhas,
E ó criptas sem luz, aonde embalsamadas
Dormem de mãos em cruz as santas e as rainhas!

Em vão olhaes o Ceu sagradas epopeias!
Flores de renda e luz, d'incenso e aromas cheias,
Aves celestiaes banhadas da manhã!

Em vão santos e reis, ó monges dos desertos!
Em vão, em vão resais, sobre os livros abertos,
- O Ceu por que chorais é uma ficção christã!

António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul'

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Adamastor...



Adamastor
Adamastor cruel!... De teus furores
Quantas vezes me lembro horrorizado!
Ó monstro! Quantas vezes tens tragado
Do soberbo Oriente dos domadores!
Parece-me que entregue a vis traidores
Estou vendo Sepúlveda afamado,
Com a esposa, e com os filhinhos abraçado
Qual Mavorte com Vênus e os Amores.
Parece-me que vejo o triste esposo,
Perdida a tenra prole e a bela dama,
Às garras dos leões correr furioso.
Bem te vingaste em nós do afouto Gama!
Pelos nossos desastres és famoso:
Maldito Adamastor! Maldita fama!
          Bocage

Amarras...



















Por mais aço utilizado, por mais corda, pedra…
Por maior resistência que tenha,
Não existe corrente que impeça o homem de sonhar…
Não existe corrente e amarra que forme mentalidades, que molde personalidades…
Essa capacidade só a corrente da vida, o cordão umbilical que nos ligou às nossas mães…

Celestino Peixeiro
        CP 68

terça-feira, 12 de julho de 2011

Pescador




Pescador


Pescador, onde vais pescar esta noitada:
Nas Pedras Brancas ou na ponte da praia do Barão?
Está tão perto que eu não te vejo pescador, apenas
Ouço a água ponteando no peito da tua canoa...

Vai em silêncio, pescador, para não chamar as almas
Se ouvires o grito da procelária, volta, pescador!
Se ouvires o sino do farol das Feiticeiras, volta, pescador!
Se ouvires o choro da suicida da usina, volta, pescador!

Traz uma tainha gorda para Maria Mulata
Vai com Deus! daqui a instante a sardinha sobe
Mas toma cuidado com o cação e com o boto nadador
E com o polvo que te enrola feito a palavra, pescador!

Por que vais sozinho, pescador, que fizeste do teu remorso
Não foste tu que navalhaste Juca Diabo na cal da caieira?
Me contaram, pescador, que ele tinha sangue tão grosso
Que foi preciso derramar cachaça na tua mão vermelha, pescador.

Pescador, tu és homem, hem, pescador? que é de Palmira?
Ficou dormindo? eu gosto de tua mulher Palmira, pescador!
Ela tem ruga mas é bonita, ela carrega lata d'água
E ninguém sabe por que ela não quer ser portuguesa, pescador...

Ouve, eu não peço nada do mundo, eu só queria a estrela-d'alva
Porque ela sorri mesmo antes de nascer, na madrugada
Oh, vai no horizonte, pescador, com tua vela tu vais depressa
E quando ela vier à tona, pesca ela para mim depressa, pescador?

Ah, que tua canoa é leve, pescador; na água
Ela até me lembra meu corpo no corpo de Cora Marina
Tão grande era Cora Marina que eu até dormi nela
E ela também dormindo nem me sentia o peso, pescador...

Ah, que tu és poderoso, pescador! caranguejo não te morde
Marisco não te corta o pé, ouriço-do-mar não te pica
Ficas minuto e meio mergulhado em grota de mar adentro
E quando sobes tens peixe na mão esganado, pescador!

É verdade que viste alma na ponta da Amendoeira
E que ela atravessou a praça e entrou nas obras da igreja velha?
Ah, que tua vida tem caso, pescador, tem caso
E tu nem dás caso da tua vida, pescador...

Tu vês no escuro, pescador, tu sabes o nome dos ventos?
Por que ficas tanto tempo olhando no céu sem lua?
Quando eu olho no céu fico tonto de tanta estrela
E vejo uma mulher nua que vem caindo na minha vertigem, pescador.

Tu já viste mulher nua, pescador: um dia eu vi Negra nua
Negra dormindo na rede, dourada como a soalheira
Tinha duas roxuras nos peitos e um vasto negrume no sexo
E a boca molhada e uma perna calçada de meia, pescador...

Não achas que a mulher parece com a água, pescador?
Que os peitos dela parecem ondas sem espuma?
Que o ventre parece a areia mole do fundo?
Que o sexo parece a concha marinha entreaberta pescador?

Esquece a minha voz, pescador, que eu nunca fui inocente!
Teu remo fende a água redonda com um tremor de carícia
Ah, pescador, que as vagas são peitos de mulheres boiando à tona
Vai devagar, pescador, a água te dá carinhos indizíveis, pescador!

És tu que acendes teu cigarro de palha no isqueiro de corda
Ou é a luz da bóia boiando na entrada do recife, pescador?
Meu desejo era apenas ser segundo no leme da tua canoa
Trazer peixe fresco e manga-rosa da Ilha Verde, pescador!

Ah, pescador, que milagre maior que a tua pescaria!
Quando lanças tua rede lanças teu coração com ela pescador!
Teu anzol é brinco irresistível para o peixinho
Teu arpão é mastro firme no casco do pescado, pescador!

Toma castanha de caju torrada, toma aguardente de cana
Que sonho de matar peixe te rouba assim a fome, pescador?
Toma farinha torrada para a tua sardinha, toma, pescador
Senão ficas fraco do peito que nem teu pai Zé Pescada, pescador...

Se estás triste eu vou buscar Joaquim, o poeta português
Que te diz o verso da mãe que morreu três vezes por causa do filho na guerra
Na terceira vez ele sempre chora, pescador, é engraçado
E arranca os cabelos e senta na areia e espreme a bicheira do pé.

Não fiques triste, pescador, que mágoa não pega peixe.
Deixa a mágoa para o Sandoval que é soldado e brigou com a noiva
Que pegou brasa do fogo só para esquecer a dor da ingrata
E tatuou o peito com a cobra do nome dela, pescador.

Tua mulher Palmira é santa, a voz dela parece reza
O olhar dela é mais grave que a hora depois da tarde
Um dia, cansada de trabalhar, ela vai se estirar na enxerga
Vai cruzar as mãos no peito, vai chamar a morte e descansar...

Deus te leve, Deus te leve perdido por essa vida...
Ah, pescador, tu pescas a morte, pescador
Mas toma cuidado que de tanto pescares a morte
Um dia a morte também te pesca, pescador!

Tens um branco de luz nos teus cabelos, pescador:
É a aurora? oh, leva-me na aurora, pescador!
Quero banhar meu coração na aurora, pescador!
Meu coração negro de noite sem aurora, pescador!

Não vás ainda, escuta! eu te dou o bentinho de São Cristóvão
Eu te dou o escapulário da Ajuda, eu te dou ripa da barca santa
Quando Vênus sair das sombras não quero ficar sozinho
Não quero ficar cego, não quero morrer apaixonado, pescador!

Ouve o canto misterioso das águas no firmamento...
É a alvorada, pescador, a inefável alvorada
A noite se desincorpora, pescador, em sombra
E a sombra em névoa e madrugada, pescador!

Vai, vai, pescador, filho do vento, irmão da aurora
És tão belo que nem sei se existes, pescador!
Teu rosto tem rugas para o mar onde deságua
O pranto com que matas a sede de amor do mar!

Apenas te vejo na treva que se desfaz em brisa
Vais seguindo serenamente pelas águas, pescador
Levas na mão a bandeira branca da vela enfunada
E chicoteias com o anzol a face invisível do céu.
Vinicius de Moraes

Navegar, navegar...





Navegar, Navegar

Navegar navegar
Mas ó minha cana verde
Mergulhar no teu corpo
Entre quatro paredes
Dar-te um beijo e ficar
Ir ao fundo e voltar
Ó minha cana verde
Navegar navegar

Quem conquista sempre rouba
Quem cobiça nunca dá
Quem oprime tiraniza
Naufraga mil vezes
Bonita eu sei lá
Já vou de grilhões nos pés
Já vou de algemas nas mãos
De colares ao pescoço
Perdido e achado
Vendido em leilão
Eu já fui a mercadoria
Lá na praça do Mocá
Quase às avé-marias
Nos abismos do mar

navegar navegar...

Já é tempo de partir
Adeus morenas de Goa
Já é tempo de voltar
Tenho saudades tuas
Meu amor
De Lisboa
Antes que chegue a noite
Que vem do cabo do mundo
Tirar vidas à sorte
Do fraco e do forte
Do cimo e do fundo
Trago um jeito bailarino
Que apesar de tudo baila
No meu olhar peregrino
Nos abismos do mar

Fausto

Aqui Onde se Espera




Aqui Onde se Espera

Aqui onde se espera
- Sossego, só sossego -
Isso que outrora era,

Aqui onde, dormindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,

E nada importaria
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,

Aqui, aqui estarei
-Sossego, só sossego -
Como no exílio um rei,

Gozando da ventura
- Sossego, só sossego -
De não ter a amargura

De reinar, mas guardando
- Sossego, só sossego -
O nome venerando...

Que mais quer quem descansa
- Sossego, só sossego -
Da dor e da esperança,

Que ter a negação
- Sossego, só sossego -
De todo o coração ?

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'